Carlos Fuentes: escrever para ser
Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu
tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha
inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que
tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.
Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no
ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno
recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e
começaríamos de verdade.
O artigo é de Eric Nepomuceno.
Vejo algumas fotos em preto e branco. E me detenho em uma, feita em
algum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas
Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel
García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão.
Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o
ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa
aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita.
Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três
fariam de suas vidas.
Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso
do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar em seus
devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda.
Volta e meia imagino como será ter sido ser jovem, ou melhor, ser um
jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles
anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São
Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e
para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele me contava
coisas. Dizia assim: ‘É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas
mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro’. Insistia:
sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova.
E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade.
E lembro que algum tempo depois, coisa de ano ou ano e meio, ao
entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com
Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou
me referindo à elegância como postura diante da vida –, quis continuar
uma conversa que eu nem lembrava qual era.
Era a conversa sobre nossos respectivos anos jovens. Disse ele,
lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: ‘A vida
segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue
discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade’.
Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez
–, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços.
Quando me refiro a ele como um homem elegante, me refiro a um
pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se
limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos.
Acreditava no que acreditava.
Acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no ser
humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar,
nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de
verdade. E escrevia assim: acreditando. Não há dois livros dele que
sejam iguais. Porque, em seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida:
sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque
ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o
primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em
nosso dia-a-dia.
A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que
desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acreditou em limites e fronteiras,
quando escrevia. E nem quando vivia.
Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a
memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de ‘A região
mais transparente’, ou ‘A morte de Artemio Cruz’, ou de ‘Terra Nostra’,
de ‘Gringo Viejo’, um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um
parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e
esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos.
Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores,
dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de
vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por
escritores.
Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um
ato natural: era como dizer que a realidade, não é suficiente. Que
precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso.
Assim viveu, assim escreveu.
Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu
tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha
inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que
tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.
Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas
tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser
humano, a de enterrar seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E
sorrindo.
Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar.
Certa vez, ele me disse que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.
Fotos: O escritor mexicano Carlos Fuentes, no centro da imagem, junto
ao peruano Mario Vargas Llosa e ao colombiano Gabriel García Márzquez
(El País)
Fonte: Carta maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20152&boletim_id=1191&componente_id=19125
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quarta-feira, 16 de maio de 2012
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